terça-feira, 10 de julho de 2012

Memorial do Convento - José Saramago

Ao contrário da maioria, o meu primeiro contacto com Saramago não foi através deste livro mas sim "A Jangada de Pedra". Prefiro o segundo, ou seja, o primeiro que li, entenda-se, mas, como se diz, "não há amor como o primeiro"... São dois livros fantásticos, contudo, e espero continuar o meu estudo da obra de Saramago. Obrigado Lisete por me cederes a obra, boa leitura Marta que a estás a ler.

Começo já por criticar o facto de ser um livro de leitura obrigatória no 12.º ano (bem, nas escolas que o escolheram). A mim coube-me a "Aparição" e daí o meu contacto tardio com o nosso Nobel. Que o romance de Vergílio Ferreira é de qualidade inferior, acho que não há duvidas; de igual modo, o livro de Saramago escolhido também me parece demais para jovens imberbes. Algo a meio caminho eu recomendaria, e a nossa literatura é riquíssima; os nossos decisores nem tanto.

O meu receio prende-se com a leitura difícil, nomeadamente num primeiro contacto, nomeadamente nas primeiras páginas. Creio que isto demoverá muitos do prazeroso acto de ler o livro; convenhamos que há muito a fazer para criar bons hábitos de leitura na nossa população, população jovem incluidíssima e esta obra parecerá aborrecida e, acimda de tudo, difícil e impenetrável para muitos... É uma pena se a determinação for baixa pois a obra é de qualidade elevada e, se assim o quiserem ou conseguirem, dá para reflectir e muito sobre o nosso pequeno país. Há problemas actuais que já existiam no antigamente e que vão continuar a existir enquanto não nos olharmos ao espelho e decidirmo-nos a mudar. E se os nossos políticos são péssimos, e sempre o foram, de um modo geral, também a atitude do povo é condenável, sempre subjugado a medos vários, sejam os da fogueira, naqueles tempos, sejam os do desconhecido, então, agora e sempre. Na única vez que nos aventurámos no desconhecido, uns verdadeiros empreendedores (termo que está na moda), conquistámos um império sem igual. Depois de o conseguir, estagnámos... Até hoje.

Para quem ainda não percebeu, o D. Sebastião nunca vai voltar! É a nossa inércia e resistência à mudança, é a nossa complacência, a nossa subjugação ao poder, é um convento construído com mão-de-obra escrava, é a Inquisição, é a falta de cultura de um povo, a falta de educação, é a condenação da diferença e a inveja de vermos os nossos a serem melhores do que nós; é o egoísmo, é uma jangada de pedra à deriva, de facto, e talvez separada de Espanha, somos uma ilha na Europa...

Um rei que vive acima das possibilidades (o rei, não o povo, atenção a esta fina distinção), uma igreja dogmática, inquisitória e sedenta de sangue, dinheiro e poder, "pão e circo", como uns séculos antes, a manterem o povo, escravizado, ocupado, inculto e dominado. Mais de dois séculos depois, e após a mudança de milénio, só mudam alguns pormenores pouco relevantes. Já não se enchem os touros de explosivos, "apenas" se espetam bandarilhas no dorso; já não há "bruxas" condenadas à fogueira pela Santa Inquisição, apenas um entorpecimento geral no país com maior consumo de anti-depressivos de toda a Europa; já não se recrutam escravos para construir conventos, faz-se de toda a população escrava, com promessas de "isto vai melhorar" e nunca melhora, por que será?, se há mais de 200 anos que não melhora, se não pontualmente, em episódios bonitos e aplaudidos, pequenos desvios que não nos tiram deste caminho de estagnação, hipocrisia e corrupção; já não temos um rei boémio, ocioso, néscio e desligado do seu povo, temos políticos boémios, ociosos, néscios e desligados do seu povo. Tudo igual, portanto.

Um Padre visionário que acaba por ter de fugir da Inquisição, um ajudante maneta (consequências da guerra num antigo soldado...) que acaba na fogueira; que pecado cometem? Querer voar! Uma jovem com poderes adivinhatórios que vê mais do que todos quando está em jejum, e cumpre assim o ritual matinal de degustação do pão, esse alimento indispensável à nossa nação, excepto quando quer ver mais. Esta "bruxa", assim seria considerada naquele tempo, é a única que escapa à fogueira, ou às investidas inquisitórias, ironicamente, mas não se livra de passar os últimos anos da vida numa busca incessante pelo seu amor, o ex-soldado, que acaba por encontrar semi-consumido pelas chamas "purificadoras" do último auto-de-fé a que tivemos o desprazer de assistir, pois todos foram demais. Uma passarola que efectivamente voou, pecado!, e que confundiu todos, poucos, quanto a viram mas que ficou no esquecimento geral menos nos de má mémória, que afinal a têm boa, outra vez ironicamente, os das fogueirinhas, obesos repesentantes da Igreja Católica, tenham vergonha na vossa história.

Um convento majestoso, construído por promessa da sapiência dos fogueirinhas, versão franciscana, aproveitando-se da pouca sapiência do nosso D. João V, nem terá sido o pior dos nossos reis, longe disso, imaginem os outros, eram outros tempos, é verdade, mas sempre houve pessoas e hierarquias, este tinha apetites sexuais por freiras, que hoje também os haverá como sempre houve mas são outras questões, e a sapiência destas raças católicas, digamos assim, aproveitando-se da opulência da nossa corte, pois o Brasil é grande agora e já antes era, fazem com que tudo seja possível, até escravizar o povo para agradar a outro povo, pois nem todo o povo é igual e uns que estão até mais bem alimentados têm mais regalias do que os que passam fome mas trabalham mais, ainda hoje é assim, qual o espanto?!

Um magnífico retrato do Portugal do início do século XVIII, do cheiro nauseabundo, do povo esfarrapado, do clero mal habituado, do reino abastado e da falta de rumo de um rei mal aconselhado. Há ainda espaço para uma história de amor, não menos interessante, de duas personagens "exageradamente" introspectivas para aqueles que os rodeiam, deliciosamente interessantes, com as suas características únicas, Blimunda e Baltasar, na tradução inglesa este amor dá título ao livro "Baltasar and Blimunda", tradução discutível pois é redutor, o livro não retrata uma história de amor, a meu ver, apesar de conter uma, apesar de estarem presentes no "centro" da narrativa, apesar de, pelas suas acções, se contar a história do livro, apesar de ajudarem a construir a máquina voadora, apesar disto tudo. Se Saramago quisesse enfatizar a história de amor, eventualmente teria chamado "Baltasar e Blimunda" à obra, por que não se eles lá estão sempre presentes?, mas não o fez.

A pontuação. Essa discussão interminável. Vou dar aqui a minha opinião, após a minha segunda obra de Saramago. Comecei por ouvir falar do nosso Nobel como "o que não sabe pontuar", "o das frases intermináveis", "o que não se consegue perceber nada porque não põe vírgulas", e tive de ler as suas obras para perceber o quão desajustadas são estas afirmações. Esta pontuação característica, e não diria inexistente pois ela existe, talvez mais parcimoniosa, aceito, imprime velocidade e acção à história. Esta novidade de Saramago deve ser celabrada, e não condenada, pois torna o seu estilo único e inconfundível, saboroso e cativante; deixem-se de dogmas, se não não percam o vosso precioso tempo a ler este livro.


Deixo algumas das citações que mais me marcaram:

“... pairam cheiros diversos na atmosfera pesada, um deles que facilmente identificam, que sem o que a isto cheira não são possíveis milagres como o que desta vez se espera, porque a outra, e tão falada, incorpórea fecundação, foi uma vez sem exemplo, só para que se ficasse a saber que Deus, quando quer, não precisa de homens, embora não possa dispensar-se de mulheres.”

“... pela casca não se conhece o fruto se lhe não tivermos metido o dente.”

“Se Deus é maneta e fez o universo, este homem sem mão pode atar a vela e o arame que hão-de voar.”

“ (...) é extraordinário como se formam um homem e uma mulher, indiferentes, lá dentro do seu ovo, ao mundo de fora, e contudo com este mundo mesmo se virão defrontar, como rei ou soldado, como frade ou assassino, (...) alguma coisa sempre, que tudo nunca pode ser, e nada menos ainda. Porque, enfim, podemos fugir de tudo, não de nós próprios.”

“ (...) a pobre não emprestes, a rico não devas, a frade não prometas (...)”

“Este é o dia de ver, não o de olhar, que esse pouco é o que fazem os que, olhos tendo, são outra qualidade de cegos.”

“ (...) tudo termina num buraco, no caso das formigas lugar de vida, no caso dos homens lugar de morte, como se vê não há diferença nenhuma.”

“ (...) é um defeito comum nos homens, mais facilmente dizerem o que julgam querer ser ouvido por outrem do que cingirem-se à verdade”

“ (...) Lembrai-vos de que quando Pilatos perguntou a Jesus o que era a verdade, nem ele esperou pela resposta, nem o Salvador lha deu, Talvez soubessem ambos que não existe resposta para tal pergunta, Caso em que, sobre esse ponto, estaria Pilatos sendo igual de Jesus”

“ (...) quanto mais se for prolongando a tua vida, melhor verás que o mundo é como uma grande sombra que vai passando para dentro do nosso coração, por isso o mundo se torna vazio e o coração não resiste, oh, minha mãe, que é nascer, Nascer é morrer, Maria Bárbara.”

“Tudo no mundo está dando respostas, o que demora é o tempo das perguntas.”

2 comentários:

  1. Eu fui uma das pessoas que teve de ler a obra no secundário, mas só agora a estou a ler com mais atenção. Não é o tipo de livros que mais gosto mas é interessante sim.
    E concordo com as comparações entre o antes e agora se pensarmos bem nada na maneira de pensar das pessoas mudou. Toda a gente vive km medo e esperança.

    ResponderEliminar
  2. Concordo completamente com a crítica que fazes à sociedade portuguesa de ontem e de hoje assim entenda-se. Ainda não se parou para olhar no espelho e não me parece que isso se faça tão cedo..

    ResponderEliminar