sábado, 27 de setembro de 2025

As crónicas crónicas - pt. I


Repartição de Finanças de S. Crucificação (lugar fictício, obviamente, baseado em factos reais, ou surreais para ser mais preciso). É um sítio que nem o demónio conseguiria inventar. Finanças tem de ser nome feminino. É do mais perverso que existe. Não é por acaso que A Morte também é fêmea... Um gajo como eu, Cidadão Bem Disposto, (CBD para os amigos, incluindo para quem isto lê), (narrador consciente, que fica inconsciente perante estes acontecimentos surreais, baseados em factos reais), que até tem noção de que não é propriamente burrinho, é levado a sentir-se o gajo mais ignorante do mundo nestes balcões... E ainda por cima a reboque de meias verdades e de imprecisões dos próprios serviços. Hoje calhou-me um clássico: "Não é aqui.". É preciso acrescentar mais? Claro que sim, embora todos saibamos parte da história que se vai seguir. "Por este andar nem vens de manhã!" - vaticina o meu colega de escritório, Colega De Escritório (CDE doravante), a quem humildemente avisei de que poderei demorar, dado ter assuntos a tratar nas repartições públicas deste país, Calquincida (sim, não existe, o nome de tal país, mas existirão os seus jeitos). "Tenho de ir, tenho uma reunião aí às 11h30.", respondi, acreditando mais em sonhos do que em realidades como esta...

"Tem de ser tudo direitinho", dizem-me, os outrora funcionários, agora chamados colaboradores, deste serviço - ironicamente, não me parece haver grande vontade de colaborar da parte deles. E está tudo direitinho, constatam, analisando tudo o que mostrei estar feito neste caso que apresentei à sua apreciação, e que teima em não avançar, apesar de, na minha perspectiva, estar feito tudo o quanto é possível da minha parte de cidadão de bem, ou não fosse esse o meu nome. "Soluções?", questiono. "Voltar a fazer o mesmo.", retorquem.". Como sei que não acontecerá o mesmo?", indago. "É esse o procedimento.", persistem. "Não me podem ajudar mais!?" - aspiro. "Não. Não é aqui." - contra-atacam. "Onde é?" - atiro. "No IRN." - , aburguesam-se."." Bom dia, obrigado." - agradeço. 

Sim, ainda agradeço, por nada mas agradeço. Aceito. Só me resta, obviamente, perseguir a solução, e dirigir-me ao IRN. Instituto de Registos e Notariado. Notável. Registos. O registo. Masculino. É mau na mesma, mas algo melhor. Esperemos que tenha sorte...

"Parece que ainda vivemos no século XVIII na função pública!" - diz o meu CDE. "Talvez possa começar uma série de época." - coagito, agitando-me, pois sempre tinha a reunião marcada para o fim da manhã, que pela amostra se afigurava longa. Continuo a ser um CBD, com boa disposição, a levar tudo na positiva, na desportiva, talvez hoje se batam recordes, quanto tempo demorará isto a ser resolvido?! 

Mudo de ares, das Finanças para os Registos. Num mundo ideal haveria um balcão onde se resolveria tudo, assim como, sei lá, uma loja do cidadão (?!), mas não aqui na Calquincida. Menos ideal mais ainda bom seria concentrar os serviços públicos num mesmo edifício, mas não aqui na Calquincida, um país utópico, ou melhor distópico, que até parece real. Assim, só me restou voltar a entrar no carro, ouvir um pouco mais o programa de rádio, e desaguar noutro mar de gente. 

Estou a observar... Não vim aqui ter por acaso... Há picos de trabalho, claro, mas há quem não faça mesmo um caralho - penso, enquanto CBD, claro, atento e interessado na evolução desta nossa sociedade. Quero com isto dizer que não costumo recorrer ao vernáculo se não nos meus pensamentos, ou iria ter de correr estes colaboradores a palavras mais directas e menos simpáticas, nem sempre bem aceites, como um "Vai-te foder!". Observo a lentidão de processos. E por mim estaria tudo bem, se não fosse o meu dinheiro aqui envolvido. Que é. Na qualidade de contribuinte. Somos nós, contribuintes, que pagamos esta ineficiência. Ironicamente, quem menos contribui para este estado de coisas é quem mais contribui, pois sabemos contribuir para algo que está longe de aprovarmos, que nos enerva, e que não muda apesar desta nossa consciência. Deste modo, para sobreviver no meio desta merda temos de ser mais eficientes do que os ineficientes que nos sugam os recursos. A administração. A pública. Mais femininos. Mais desgraça. As contas. As públicas. É impossível ser bom no meio disto. 

"O que estás aqui a escrever merecia uma publicação: o teu blogue ainda está activo?" - bem se lembra o CDE. Está pois, activo, o blogue, e para esclarecer, os serviços são tão céleres que consigo escrever a história enquanto a vivo, ou seja, enquanto aguardo a evolução (?!) dos serviços nesta matéria. Em qual matéria? Não interessa, é um exemplo, um bom exemplo, como por exemplo nenhuma criança responde que quer ser funcionário público quando for grande, porque as crianças são inteligentes, e querem ser heróis, não estes anti-heróis de crachá, devidamente identificados, inutilmente, parte de uma massa acéfala que se vai movendo, do seu próprio jeito, sem grande pressa, igualmente conhecida como função pública. Sim, este enorme organismo é composto de vários membros, membros que interagem entre si, que fazem parte dum status próprio, que só eles conseguem viver. Falam entre si. Riem-se. Como se fosse possível, para quem está de fora, achar alguma graça a ter de recorrer a estes serviços.  

Gostaria, contudo, de me juntar a algumas conversas. Entender o outro lado. Ganhar dinheiro sem fazer um caralho, e ainda me achar o melhor do mundo - oh sim, este CBD inveja esta escumalha pública. Entretanto reparo numa maior agitação entre esta mole de colaboradores. Um balcão em particular. Uma conversa entre dois exemplares dessa raça que nos atende (?!). Alto, alguém se levanta! Vão tomar café! Só pode! Ah, já percebi. Um filho duma puta dum gajo qualquer tirou a senha que uma delas tem de atender. Já disse que eram duas gajas? Não é preciso, eu sei. Quem me lê percebe. Que cabrão, deixou de produzir para vir fazer o cartão de cidadão! E interromper a conversa. Filhos duma puta! "Amiga, atende esse que vou tomar um café, que a manhã já vai longa..." - diz uma para a outra. E eu à espera, com uma reunião marcada que se aproxima, perto do sem saber o que fazer: arriscar sair e ter de vir viver este Inferno num outro dia? Ou passar por mau profissional e desmarcar a reunião, esperando que esta manhã seja suficiente para o meu caso? Uma coisa de cada vez ainda tenho alguns minutos. 

Enquanto uns nada fazem - ei-los à descarada, nem tentam disfarçar - , outros só atendem uma senha. Específica. Uma letra. Cuspida pela máquina das senhas, enquanto as ainda há. Por isso se vem de manhã, de tarde só digere, não cospe, não nos atendem. Assim está organizado. É racional? Não, é a administração pública...

Incrível, a primeira que abandonou para ir tomar café chegou apenas uns cinco segundos antes do trabalhador se retirar. Já devem ter isto cronometrado. Assim fico a saber que, para lá da porta onde a espaços desaparecem alguns destes exemplares funcionários da nação, haverá uma máquina de café. Se calhar também o pago. Uma parte em milhões, claro, mas também o pago. O pagamos: só o irmão contribuinte consegue chegar tão longe na leitura desta narrativa, porque se sente compreendido. Obvamente, o café deve ser pago pelo estado. Por que sequer o questiono?! É o mínimo que este país pode fazer pela produtividade dos seus melhores... Também me apetecia: não o merecia? Afinal também o pago... 

O Sr. B, um qualquer colaborador público, por acaso com bigode, que não se importa de se anunciar, tal a discrição do seu trabalho, é a cara deste grupo, e do melhor que há neste serviço: acaba de desligar-se da sua função e dizer que "já vai", e vai mesmo, com um saco de papel na mão, que sendo opaco não esconde o cheiro a doce, lamento ser perspicaz, e vai para onde?! Sim, a porta sagrada! Vai lanchar, como é óbvio. Até porque os serviços abrem às 09h00, e isto como é muito rigoroso tem de estar à frente do café às 10h30! Falta um minuto... Já chegarão os dias em que está de mau humor por alguém tirar a senha nas imediações da hora do lanche do Sr. B. Não há respeito! Sim, tem idade para a reforma, ou quase (mas não temos essa sorte), tem óculos, cabelo curtinho, bigode (claro!), e mete-se com as meninas que vão passando, subtilmente, dando os bons dias, e descaindo piadas de circunstância. Sublime. Se este gajo não vota no PSD (Partido da Sociedade e da Democracia da Calquincida) não percebo nada disto. Disto de quê? De observar pessoas. Talvez não perceba mesmo, mas o Sr. B obviamente vota PSD. São eles que lhe dão o pão (partido actualmente no poder na nobre Calquincida). 

Arrisco croissant, pão não era, pão não cheira a doce. Pão é para o povo. Cheira a algo simples. A algo que o povo nem sempre come. Aqui o povo não é digno de mais, é uma sorte se houver senha para esse mesmo dia. Não se pode querer tudo. Temos de estar gratos pelo que temos. Graças a Deus!

Por falar em Deus, não sei por que me queixo, só estou cá há quarenta e cinco minutos... E estou ao lado do sítio onde vou ser atendido. Onde a amena cavaqueira persiste, sim, entre outras duas gajas, mas uma de cada lado do acrílico, não haja confusões. É outra coisa... mas vai dar ao mesmo. À mesma ineficiência. Fico, contudo, esperançado que, comigo, haja a mesma familiaridade no trato. A mesma amizade no falar. A mesma doçura no convívio. Mas duvido, porque eu sou um pouco mais enérgico, digo a verdade e sou mais rápido e eficiente, sou um prevaricador! E isso nota-se! Deve haver um código secreto de conduta, que sugere baixar a energia de gente assim. Os serviços estão bem como estão... Cinquenta e um minutos depois de entrar, o meu destino vaga de cliente. Como será comigo?!

"CDE, entretanto chegarei com algum perspectiva de solução, espero, e a tempo da reunião. Até já." - anunciei. "Troca os locais e nomes e pública, para partilhar, isto é muito bom para ficar só aqui!" - sugeriu, e bem, o meu CDE. E passados uns meses concretizou-se. E chamar-se-ão "crónicas crónicas". Estas e outras como esta. 

O assunto que me levou aos serviços, esse ainda não está resolvido. Talvez nunca esteja. Qual é? Não interessa. Assim como não estamos nós resolvidos, os cidadãos dados à reflexão - que também não interessam a esta nação -, mas estamos atentos, e com uma palavra a dizer. 


Olho para o exterior e vejo a chover. 


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